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João Novaes
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João Novaes é jornalista, diretor de cinema e vídeo e produtor executivo do Instituto Rizzo – rizzoinstituto@gmail.com / atendimento@aredacao.com.br

Ambientes Urbanos

Carta ao pajé-sacaca

| 29.09.20 - 21:23 Carta ao pajé-sacaca (Foto: divulgação)
Pai, faz pouco mais de mês que você partiu de volta para o todo, pra outra margem do rio, de volta pro lado do vô Henrique e da vó Arlinda. Pra perto de seus grandes amigos, Hélio Pelegrino, Otto Lara Resende, Cláudio Abramo,  Fernando Sabino, Aritana, Malakuyawá Waurá e tantos outros gigantes. No som toca baixinho Keith Jarret, que você tanto ama. Só não consigo escutar ainda o Cartola , que tocou naquele nosso último dia dos pais juntos e que me fez chorar, meio que intuindo a dureza do destino que se aproximava. Estou aqui agora sozinho, nesse mundo insano e falido que você tanto tentou mudar! O mundo, esse moinho que tritura nossos sonhos tão mesquinhos e que reduz mesmo todas nossas ilusões a pó. 
 
Seus amigos aí em cima devem estar felizes com sua presença. Mas aqui ficou um vazio enorme, como uma adaga de vidro cravada nas costas, que tira o ar e enche o peito de saudade. Uma inominável saudade, uma sufocante saudade. Sei que você me ensinou que somos todos feitos de poeira de estrelas, que já fomos tudo e ainda seremos tudo. E que tudo o que fizermos - muitas vezes com o fogo -  sobre a terra a água e o ar , voltará para nós mesmos. Porque não existe meio ambiente, só o ambiente inteiro, a teia da vida que nos cerca e da qual fazemos parte! Sei que agora , ou pelo menos por um bom tempo , só poderei te ver em sonhos, na beleza de um Ipê florido, no barulho suave de um rio , como o Pedra Branca ou o Encantado, lá em Baliza. Ou no voo tranquilo dos pássaros, na força de um entardecer do Cerrado, no andar esquisito de uma siriema perdida no pasto. 
 
Só quero te agradecer por tudo! Por ser esse pai maravilhoso e presente em nossas vidas. Um exemplo ímpar de ética e profissionalismo. A personificação da gentileza, do companheirismo com todos. O olhar mais do que atento, aguçadíssimo, para questões que para os outros passavam despercebidas. Só quero te agradecer pelas suas escolhas, que nos trouxeram para Goiás e nos fizeram viver em meio à natureza intocada, embrenhados por veredas de buritis, lavados por cachoeiras límpidas, com os olhos clareados de tantos céus estrelados. Obrigado pai, por ter nos dado uma infância mais do que perfeita, idílica e tão repleta de possibilidades! 
 
Obrigado pai, por ter sido meus pés , olhos e mãos, junto com minha mãe, em todos os meus momentos de cegueira , em que me encontrava perdido no caminho.  Por ter me mostrado o valor do trabalho desde pequeno, quando engraxava seus sapatos, lavava o carro ou recortava artigos de infinitos jornais para seu arquivo pessoal. Por ter me ensinado a escrever nos cantos dos seus jornais diários. E depois quando me ensinou a paixão pelos documentários e pelo cinema, com libelos como os “Sonhos”, “Dodeskaden” e “Dersu Uzala”, do mestre Kurosawa , com toda certeza um de seus diretores prediletos.  Obrigado por ter me apresentado e iniciado no zen budismo, mesmo sendo católico, com sua enorme coleção de livros sobre o tema, que vao desde Allan Watts a D.T Suzuki e Carl Jung com seu belíssimo ” O segredo da flor de ouro”. 
 
Estou aqui em seu escritório , olhar vazio e perdido entre tantos prêmios e láureas que recebeu nesta sua vida. Aqui, entre seus retratos feitos pelo Siron e pelo Roos, perto de seu pôster do Sartre, “L‘espoir maintenant”. Mas como ter esperanças em um mundo tão sórdido, que mesmo revirado por uma pandemia sem precedentes que ceifa milhões de vidas, encontra espaço para enriquecer ainda mais seu multi-bilionários? Como encontrar força e esperança frente a uma realidade tão dura e áspera, política e economicamente falando? Bem que meus guias já tinham me avisado em sonhos que seu tempo aqui por estas paragens já havia acabado, embora eu não aceitasse. Você não merece mesmo ter que ver mais tanto descalabro, tanta ganância, tanta indiferença destruindo nosso biomas e infectando esse planeta divino que muitos de nós não merecem!  
 
Estou aqui em seu escritório, seus óculos pousados sobre a mesa , as cartas do baralho ainda empilhadas de seu último jogo de paciência, perdido entre livros e mais livros, papéis e mais papeis! Carcomido por lembranças busco entre tantos aquele livro de que sempre tanto falou: “Pajé-sacaca”, escrito por um militar e que descrevia esse pajé dos pajés, capaz de se misturar aos elementais da natureza, de conversar frente a frente com os encantados,  de entender os sinais da natureza e a linguagem dos pássaros, de converter a doença em bênçãos . Pajés-sacaca como Malakuyawá Waurá e Takumã Kuikuro, que você tanto conheceu. Homens que nunca se separaram da natureza e por isso dela se servem para guiar seu povo. Deve ter sido realmente muito mágica aquela noite  nbo Xingu, junto aos Waurás, em que viu Malakuyawá pedir que toda a aldeia fizesse silêncio, porque precisava escutar os pássaros, pra poder fazer sua pajelança para o nascimento da pequena Uluti, que estava com dificuldades pra vir ao mundo do ventre da mãe! 
 
Você é, foi e sempre será nosso pajé-sacaca , pai! Cada canto dessa chácara aqui em Goiânia me lembra você! Cada árvore plantada, o beija-flor afoito entre as flores do cactos, o caminho das formigas recoberto de cascas de sementes, o musgo que recobre o seu Mogno, as folhas dos Flamboyants jogadas ao vento. Agora está tocando Ray Charles, “Georgia on my mind” que você tanto gostava de escutar nos domingos, quando chafurdava em seus discos e eu acordava tarde, sempre despertado por suas pérolas do jazz , da MPB ou da música clássica! Que saudade pai, que saudade! 
 
Ficam as boas lembranças, de quando eu brincava ainda pequeno, mais ou menos com a idade que a Clara agora tem,   deitado em seu peito e jogando bola na grama da primeira chácara que moramos aqui em Goiânia. Lembranças engraçadas, como quando eu, o Marcelo e nossa equipe ficamos rindo de você , correndo esbaforido atrás de nossa van pelas ruas de Roma. Ou nessa mesma viagem quando fomos expulsos do táxi em Milão pela fedentina que exalávamos,  após uma gravação numa usina de geração de energia a partir de gases do lixo orgânico. Ou ainda sob o sol causticante do Xingu, quando você nos olhava jogando bola com os índios e depois  íamos atrás do frescor da lagoa Ipatse .  Saudades de você e minha mãe escutando Elis Regina em nossa casa no campo , vendo tamanduás cruzando o quintal ou contando araras no céu! Saudades de ver você tomando sua cachacinha na beira do rio Perdizes ou na cachoeirona do Batista Custódio, no rio Encantado, enquanto esperava nossa macarronada com salsichas, um clássico, ficar pronta! 
Não acredito na morte, somente em vida após a vida! E já me deram inúmeras provas disso Foi-se seu corpo, ficam seus sonhos , suas lutas, seu enorme legado, seu espírito correndo em nossas veias, seu idealismo iluminando nossos olhos, abrilhantando nossas mentes! Ficam seus escritos, artigos luminosos e visionários, livros  e importantes e marcantes documentários e séries .  Pode ter certeza pai, que o desejo de construir o Museu da Água de Goyaz que era uma vontade tão grande sua já se tornou uma missão e meta de vida para mim, faz tempo. Lutamos anos juntos pela sua construção, mas pode ter certeza que agora seguirei sozinho e com meus amigos nessa luta por um centro de referencia em educação ambiental para todos! 
 
E também não vou desistir de nossos outros projetos juntos: essa coluna aqui, “Ambientes urbanos” e nosso longa documental e série “Desafio limpo”, sobre a importância das energias renováveis no combate às mudanças climáticas . Que dai de cima, junto com todos os espíritos de luz que te acolheram por essa trajetória perfeita, sem mácula alguma, você possa iluminar e guiar ainda mais meu caminho e de nossa família. E quem sabe dar uma forcinha pra que esses sonhos que sonhamos juntos se tornem realidade! 
 
Que o seu novo caminho seja repleto de flores e cores , como fez com o nosso. Como o caminho do turista japonês no sonho do Kurosawa, adentrando pradarias celestiais pintadas nervosa e precisamente por Van Gogh! Que sua passagem seja suave e seus novos  encontros fraternos  e cheios de sabedoria  como no enterro deste mesmo filme!  Vai em paz pai, com a certeza do dever cumprido, de uma maravilhosa luta bem lutada, com a força de um huka-huka, de um karma excepcional acumulado, que com toda certeza te deu luminosas vestes astrais para que possa ir aonde quiser! Que este novo caminho seja perfumado pelo suave odor das flores dos seus angicos, que acabam de desabrochar neste ensolarado setembro. 
 
Até logo pai, em breve a gente se encontra ai do outro lado , no inefável ,no não criado, do outro lado do buracos dos karajás, nas praias límpidas do Araguaia celeste. Ano que vem estaremos lá junto com seus amigos Kuikuro e todas as outros tribos xinguanas chorando sua partida no Kuarup que nos prometeram.  Não poderia haver maior e melhor homenagem para alguém do seu tamanho, repleto de tanta ternura e carinho. Que saudade pai, que saudade! 
 

Comentários

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  • 01.10.2020 19:32 Leslie

    Linda homenagem ??

  • 30.09.2020 17:19 Edson Luiz de Almeida

    Maravilha de texto. Justa homenagem a um grande jornalista e documentarista, ser humano extraordinário, com quem tive a honra de trabalhar. Esteja em paz, Washington.

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