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Pedro Novaes
Pedro Novaes

Diretor de Cinema e Cientista Ambiental. Sócio da Sertão Filmes. Doutorando em Ciências Ambientais pela UFG. / pedro@sertaofilmes.com

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O Brasil sombrio das fronteiras

| 13.02.24 - 10:28
 



 
Cicatriz do garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami, em Roraima
 (Foto: Leo Otero, Ministério dos Povos Indígenas/Agência Brasil)
 
É nas fronteiras econômicas que se forja o verdadeiro caráter do país, explica o sociólogo José de Souza Martins. Não é em suas grandes cidades ou na Amazônia ainda remota que o Brasil revela sua face profunda, mas sim, de certa forma, onde os dois se encontram.
 
Nas partes do território onde a economia moderna se choca contra o tempo diverso da floresta ou do cerrado, dos povos indígenas ou de outras comunidades tradicionais, entram em conflito diferentes visões de mundo. Por isso, nas palavras do sociólogo, "é na fronteira que se pode observar melhor como as sociedades se formam, se desorganizam ou se reproduzem. É lá que melhor se vê quais são as concepções que asseguram esses processos e lhes dão sentido".
 
A noção de fronteira remete às ideias do historiador americano Frederick Jackson Turner que, no final do século XIX, afirmou que o espírito da civilização americana surgira não nas metrópoles da Costa Leste, mas na fronteira, no choque entre a cultura europeia, o mundo indígena e a natureza selvagem do Grande Oeste.
 
Por isso, não há como entender o Brasil sem olhar para as nossas fronteiras econômicas pretéritas e para as dos dias de hoje. Para conhecer nosso país, é preciso percorrer a Amazônia, no oeste do Pará, no norte do Mato Grosso e no sul do Amazonas, o lavrado de Roraima, o Cerrado, no Mato Grosso do Sul, no norte do Tocantins, no sul do Piauí e no norte da Bahia. É nesses lugares que a chegada das madeireiras, do gado, da agricultura ou de grandes projetos de infraestrutura redefine as bases da vida e transforma a paisagem humana e do ambiente.
 
Em 2022, pude fazer uma visita breve à Reserva Indígena de Dourados, junto à cidade de mesmo nome, coração do agronegócio sul mato-grossense. Nessa área de 3 mil hectares, vivem quase 20 mil indígenas Guarani-Kaiowá, Guarani Ñandeva e Terena. 
 
Por mais que já tivesse lido e ouvido falar sobre os conflitos, a pobreza e as carências dessas comunidades, nada me preparara para o que vi. A ironicamente chamada "Aldeia" Jaguapiru é um bairro da periferia da rica Dourados onde aglomera-se a maioria dos moradores dessa terra indígena. Não há asfalto, nem saneamento, o tráfico domina as ruas poeirentas e desordenadas, a violência é cotidiana. Entre os Guarani-Kaiowá, como se sabe, há altos índices de suicídio de jovens que não conseguem se situar no mundo, presos entre a tradição que já não lhes oferece os recursos necessários para a vida e as promessas da modernidade que teimam em não se realizar para eles.
 
Pode-se também visitar qualquer desses municípios do norte do Mato Grosso, como Aripuanã. Não longe de lá, há pouco mais de um século, Theodore Roosevelt e o Marechal Rondon partiram para sua famosa expedição pelo então chamado Rio da Dúvida - hoje Rio Roosevelt -, uma das maiores aventuras humanas de todos os tempos. 
 
Àquela época, toda essa região era território Cinta-Larga e Arara. Hoje, quem chega à cidade pela MT-208, vindo de Juína ou Alta Floresta, cruzará com a inevitável fila de carretas carregadas de toras. Passando pela periferia, verá os traços comuns típicos de municípios da fronteira amazônica: casebres empoeirados, muitas carcaças de carros destruídos pelo ambiente impiedoso da floresta, outdoors de apoio a Bolsonaro. Entrando na cidade, caminhonetes do ano e SUVs circulando; a mistura de rostos e sotaques, com ênfase nos loiros e no falar acentuado de gaúchos e catarinenses e nas faces indígenas e sons melodiosos da língua de tronco tupi dos Cinta-Larga.
 
Cruzando, do outro lado da cidade, o largo Rio Aripuanã de águas escuras, não é preciso rodar muito para chegar ao imenso garimpo que ganhou as manchetes dos noticiários em 2019 pela febre que gerou na região, com afluxo de milhares de pessoas e o rastro de mortes e poluição. 
 
Não foi longe daqui que, em 1963, aconteceu o infame Massacre do Paralelo 11, quando, a mando do fazendeiro Antônio Mascarenhas Junqueira, aldeias Cinta-Larga foram bombardeadas de avião com dinamite e posteriormente chacinadas por uma expedição terrestre que matou cerca de 3.500 indígenas, muitos com requintes de crueldade. Junqueira, que seguiu impune, como todos os envolvidos no morticínio, foi também o mandante do assassinato, em 1987, do missionário jesuíta Vicente Cañas, no Rio Juruena, por sua defesa dos Enawenê-nawê. 
 
A violência é o alicerce da dinâmica política e econômica nas fronteiras - violência física, na desigualdade social, nos assassinatos, na coerção, e violência simbólica, no preconceito, no etnocídio, no valor dado aos traços físicos e à cor dos olhos e da pele.
 
Como explica José de Souza Martins, entre as muitas disputas que caracterizam a fronteira, "a que domina sobre as outras e lhes dá sentido é a disputa pela definição da linha que separa a cultura e a natureza, o homem do animal, quem é humano e quem não o é".
 
Nessa disputa, o que é reconhecido como pertencente ao domínio da natureza passa a ter valor apenas econômico - a floresta e seu solo, como matérias primas, o indígena ou o ribeirinho, como mão-de-obra. Torna-se então verdadeira empreitada civilizatória e humanizadora a conquista do território e a modernização forçada dos que o habitavam antes.
 
A eleição de Bolsonaro e a maneira pela qual, com ele, saiu do armário um Brasil feroz e preconceituoso, que não acredita nas regras mais básicas da civilização, mostram, de maneira assustadora, como a lógica da fronteira faz parte efetivamente de nosso caráter como país.
 
 
 

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