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Pedro Novaes
Pedro Novaes

Diretor de Cinema e Cientista Ambiental. Sócio da Sertão Filmes. Doutorando em Ciências Ambientais pela UFG. / pedro@sertaofilmes.com

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O Brasil de Leonardo e o Brasil de João Gilberto

| 20.02.24 - 10:00 O Brasil de Leonardo e o Brasil de João Gilberto (Fotos: Prefeitura de Votuporanga/Wikimedia e Tuca Vieira/Wikimedia)
Em seu fundamental Biografia do Abismo, Felipe Nunes e Thomas Traumann expõem, com base em dados de extensas pesquisas, o grau de calcificação ideológica da vida política brasileira. Vivemos uma polarização cada vez mais forte, mas, sobretudo, uma intensa cisão, de cunho ideológico e identitário, onde temas morais ganham cada vez mais proeminência nos debates públicos e definem as posições dos indivíduos e suas escolhas, não apenas de voto, mas também de consumo e nas relações pessoais.
 
Traçando um panorama dessa divisão, os autores separam o eleitorado brasileiro em oito grandes grupos ideológicos. Entre eles, um dos perfis que se destaca é o do "Agro", que abrange cerca de 14% dos eleitores e que não é composto apenas pelos agropecuaristas em si, mas por todo um Brasil interiorano e sua cultura rural e sertaneja. Junto com os conservadores religiosos, que chegam a 29% do total de eleitores, compõem a maior parte da base de apoio a Bolsonaro, em 2018 e 2022, e o grosso da direita brasileira.
 
Os motivos que levam cada um desses grupos a se posicionarem à direita ou à esquerda do espectro, mais ao centro ou rumo aos extremos, são diversos. De um lado e outro, entretanto, as afinidades entre os grupos são cada vez maiores em questões consideradas cruciais e eles formam dois grandes blocos que dividem o país ao meio e determinam sua dinâmica política e vida social.
 
A polarização é preocupante porque tem muito de profecia auto-realizável. Quando passamos a enxergar os opositores no espectro político como inimigos e começamos a demonizá-los, estimulamos sua radicalização e a busca de refúgio na ponta do espectro. Isso alarga ainda mais o fosso, impossibilita o diálogo e a construção de convergências que são a base do jogo democrático.
 
Se o crescimento da questão religiosa e da força evangélica tem sido, de muitas maneiras, determinante para o país, pode-se dizer o mesmo da questão ambiental e da força do agro. O desmatamento da Amazônia divide o país tanto quanto o aborto.
 
Queria aqui, por isso, me debruçar sobre essa que é uma das polarizações dentro da grande polarização brasileira: a que tem o agro como um dos lados do conflito.
 
No momento em que o mundo se dá conta da gravidade das mudanças do clima e traz a questão ambiental para o centro do debate político, a evolução desse conflito será determinante para aquilo que o país poderá lograr em termos da necessária transição de padrões econômicos rumo a um desenvolvimento mais sustentável - e, por essa via, será crucial também para o futuro do planeta.
 
A centralidade do debate de fundo moral, mediado pela religião, na intensidade que temos hoje, parece ser um vetor mais recente em nossa história. Ela se superpõe a conflitos muito mais antigos e profundos que têm a ver com o que é o agro e com a maneira como nós, brasileiros urbanos, enxergamos esse mundo e sua cultura.
 
Sim, são agentes e forças econômicas ligadas, de diferentes maneiras, ao agro, que conduzem a ocupação desastrosa do território brasileiro. Nossas fronteiras econômicas seguem avançando de forma impiedosa sobre a Amazônia e o Cerrado, numa dinâmica assentada em lucros privados e prejuízos públicos que produz alguma riqueza, mas também gera grande desigualdade econômica e impactos irrecuperáveis sobre o meio ambiente.
 
Por outro lado, sair das redes e das grandes cidades em direção ao Brasil profundo mostra que esse é apenas um aspecto do agro brasileiro. O coronel de chapelão, bigode e 38 na cintura, herdeiro dos modos das capitanias e sesmarias, ameaçando posseiros enquanto seus tratores avançam sobre a floresta, é um retrato que não dá conta de toda a complexidade do Brasil rural.
 
João Pereira Gomes, mais conhecido como "Seu Preto", tem 82 anos e é produtor de leite no município de Inaciolândia, sul de Goiás. Em sua pequena fazenda de 48 hectares, chamada "Cantinho da Mata", junto com os filhos Roberto e Aurélio, ele cria em torno de 50 vacas que lhe rendem, cada uma, aproximadamente 40 litros de leite por dia. O trabalho começa de madrugada e não há dia de descanso. São duas ordenhas diárias, além do trabalho constante de manejo do gado, com a colheita de cana, preparação e distribuição da ração, tratos veterinários e o cuidado com as pastagens.
 
Para maximizar a produtividade, já há alguns anos, estimulado por técnicos de extensão rural, Seu Preto implantou um sistema integrado de pecuária e floresta na Cantinho da Mata. Consorciando eucalipto às pastagens, ampliou as áreas de sombra, o que diminuiu a temperatura média e aumentou a produção de leite das vacas, melhorou a qualidade do solo e do capim e ainda adicionou mais uma fonte de renda à propriedade, com a possibilidade da venda de lenha a cada ciclo das árvores. É um sistema produtivo cada vez mais difundido em que ganham o produtor e o meio ambiente.
 
Ainda assim, a renda de um produtor de leite como Seu Preto, sujeita às flutuações do mercado e às margens estreitas impostas pela indústria, é bastante modesta. Não se vive mal, mas o trabalho é árduo e ininterrupto, e os riscos, sempre altos. A produção de um dia perdida pela falta de energia que garante a refrigeração do leite põe em risco a margem do mês.
 
Duzentos e tantos quilômetros além, Ronaldo Valério é da segunda geração de uma família de imigrantes paranaenses em Chapadão do Céu, extremo sudoeste de Goiás. Há quase duas décadas, com a restrição ao plantio de transgênicos no entorno do Parque Nacional de Emas, que é seu vizinho de cerca, ele precisou buscar alternativas para sua fazenda. Hoje, Ronaldo produz alguns milhares de hectares de commodities, como soja, milho e sorgo, praticamente sem uso de insumos químicos, trabalhando apenas com adubação natural e controle biológico de pragas. Se não produz a mesma quantidade de sacas por hectares que seus vizinhos, seus custos, por outro lado, caíram drasticamente, e ele lucra mais por hectare do que os produtores que dependem dos pacotes tecnológicos das grandes multinacionais do agronegócio. Ronaldo é hoje uma referência de caminhos mais sustentáveis para a grande agricultura.
 
Não é preciso, entretanto, muito esforço para saber o que Seu Preto e Ronaldo têm em comum além da profissão: ambos votaram em Jair Bolsonaro para presidente, em 2018 e 2022. 
 
Suas razões para isso não se relacionam a eventuais restrições ambientais impostas pela legislação. Os dois cumprem todas as normas ambientais e não se queixam. Por trás de sua decisão de voto, está o ressentimento em relação à maneira pela qual, como agropecuaristas, são rotulados pelo Brasil urbano: como atrasados, incultos e inferiores, além de colocados na vala comum dos "inimigos do meio ambiente".
 
Se o conflito entre o agronegócio e a questão ambiental tem um bocado de verdade que não pode ser varrida para baixo do tapete, por outro lado, os argumentos corretos que o Brasil urbano tem nesse embate se misturam a preconceitos bem mais arcaicos que remetem, entre outras coisas, à secular dificuldade de construção de uma identidade nacional propriamente brasileira.
 
Desde nossa primeira vontade de independência, atiçada pela vinda de Dom João VI para o Brasil, em 1808, forjamos uma ideia de país a partir da corte, no Rio de Janeiro, e de alguns centros urbanos mais ricos, sempre buscando inspiração em um modelo europeu e com as costas voltadas para o imenso interior.
 
Nesse caminho, forjamos um arremedo de identidade que é uma tentativa de administrar ambivalências inconciliáveis. Somos, dessa forma, um país mestiço que é dos mais racistas do mundo, uma sociedade que se quer afetuosa e é, no fundo, terrivelmente violenta, um país que se ambiciona globalizado, cosmopolita e urbano, mas que, em sua essência, é rural, florestal, sertanejo, indígena e profundamente desigual e injusto. Por isso, ao longo do tempo, sempre que o Brasil dito "moderno" olha para o espelho do interior, não gosta da imagem que vê refletida. 
 
A música sertaneja é o exemplo mais acabado dessa ambivalência. Sintonizem-se 90 por cento das estações de rádio no Rio de Janeiro ou em São Paulo e não se ouvirá outro gênero. Ainda assim, as elites urbanas dessas cidades carregam enorme preconceito em relação a grandes artistas como Chitãozinho e Xororó, Leandro e Leonardo, Bruno e Marrone ou Marília Mendonça. No máximo, premidos pelas exigências do politicamente correto, dirão que gostam "da música caipira de raiz, mas não do sertanejo" - como se uma fosse separável da outra. Como pode o gênero musical mais ouvido do país ser algo tido como inferior? Como pode não ser considerado, pela elite intelectual, parte fundamental de nossa identidade?
 
Como diria Caetano: "Narciso acha feio tudo o que não é espelho".
 
O rural brasileiro é muito mais complexo do que os retratos monocromáticos que pintamos dele. Há propriedades e produtores de todos os tamanhos e origens. Há de fato gente que enriquece à custa da devastação, mas há muita gente trabalhadora que pena para fechar as contas no fim do mês. Há uma cultura machista e violenta, mas não são as metrópoles campeãs de feminicídios que podem dar lição de moral sobre o assunto. Misoginia infelizmente não é exclusividade de cidades pequenas e do meio rural, quanto mais a criminalidade.
 
Além disso, o universo agro é muito maior e mais difuso do que o campo. Ele é a própria vida da imensa maioria das cidades pequenas e médias do interior brasileiro: do Rio Grande do Sul a Roraima, de Rondônia a Minas e São Paulo, do Mato Grosso do Sul ao miolo do Nordeste.
 
É claro que, para entrar no século 21 - se é que chegou a entrar no século 20 -, o Brasil precisa realizar uma imensa transição econômica. Vai ser necessário produzir com uma dependência muito menor desse uso destrutivo dos recursos naturais. Para repetir o óbvio mil vezes dito todos os dias: temos que deixar de ser exportadores de commodities para nos tornarmos vendedores de conhecimento. A floresta e o Cerrado têm que deixar de ser um combustível que queimamos a cada grão de soja que embarca em nossos portos para que sua preservação se torne a base de uma outra economia que só nós podemos oferecer ao mundo.
 
Mas, por enquanto e ao menos pelo futuro próximo, a economia brasileira depende enormemente do agronegócio. É dele, em grande medida, que veem as riquezas que sustentam o país. E isso dá ao agro um enorme peso político que ele tem sabido catalisar a partir da organização do principal lobby e da maior bancada do Congresso Nacional.
 
 
É óbvio que não estou aqui fazendo uma defesa unilateral do agronegócio ou do Brasil agro. Apenas tento apontar duas questões fundamentais em um país carente de pontes e diálogo: 1) o agro é muito mais diverso do que estereotipam nossas idealizações urbanas e progressistas, 2) o Brasil urbano tem enorme dificuldade de olhar para sua face rural e carrega um preconceito em relação a ela enraizado em conflitos atávicos relacionados à definição da própria identidade nacional.
 
Como adendo final, cabe também lembrar o alto nível de hipocrisia inerente ao retrato do agronegócio unicamente como força do mal e o fato de comermos a carne e centenas de outros produtos derivados do campo todos os dias. Não é proibido criticar, mas convém de vez em quando olharmo-nos no espelho e assumirmos nossas responsabilidades.
 
Tudo isso para dizer que, ao menos que acreditemos na revolução ou em algo do gênero, é preciso repensar nossa postura em relação ao Brasil rural. Se não formos capazes de construir pontes, estabelecer diálogo e, de forma inteligente, trazer essa fatia do Brasil para um compromisso maior, a trajetória do barco seguirá inalterada - aliás, ao contrário, a tendência é a de que acelere sua velocidade no rumo que já está dado.
 
Como exorta Pablo Ortellado em artigo recente já citado nesta coluna: "precisamos de menos polarização e mais autocrítica". 
 
O Brasil de João Gilberto e o Brasil de Leonardo precisam conversar.
 
(Os dois personagens citados no texto são reais, mas alterei seus nomes e lugares para não expô-los desnecessariamente num debate polêmico).
 

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