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Pedro Novaes
Pedro Novaes

Diretor de Cinema e Cientista Ambiental. Sócio da Sertão Filmes. Doutorando em Ciências Ambientais pela UFG. / pedro@sertaofilmes.com

PROJETOR

Na vala comum

| 12.03.24 - 07:51 Na vala comum Na foto da Expedição Roncador-Xingu, circa 1943, ele pode ser entrevisto no fundo, à direita (Foto: Arquivo Nacional).

Saiu de casa aos 13. O pai morrera um ano antes, o pulmão perfurado pelo chifre de um boi no curral ao lado da casa. A mãe tinha pouco mais de 30 anos. Num sertão como aquele, uma mulher não tinha como permanecer solteira, ainda mais com quatro filhos para criar.
 
Mas o padrasto não gostava da atenção que a mãe lhe dava. Começou a mandá-lo para os piores serviços da fazenda. Limpar o mangueiro, ajudar os peões na capina do cafezal, cortar cana. 
 
Considerou suas opções e, pensando na barriga pontuda do velho, chegou a amolar bem a faca de cabo de osso que ganhara do pai, mas desistiu. Desgraçaria sua a vida e a da mãe. Arrumou uma pequena mala com mudas de roupa e o 38 que pertencera ao pai e que a mãe guardava, junto com a caixa de balas, numa lata velha de leite na despensa. Partiu sob o orvalho de uma madrugada gelada de maio. Quando a mãe desse por sua ausência, já estaria longe.
 
Procurou o Sesfredo, dono de uma serraria perto da Lagoa Seca, velho conhecido do pai, e pediu para trabalhar. Naquela noite, quando abriu a mala, encontrou um maço de dinheiro e uma foto, a única, tirada pelo turco Nagib, caixeiro-viajante, em que estavam o pai, a mãe e ele. Sozinho, na rede velha que o patrão lhe cedera e que armara nos fundos da serraria, aquela foi a única vez em que chorou, de raiva e de medo.
 
Ficou três meses ali, serrando toras e trabalhando em troca de comida até chegar um recado do padrasto, de que não o queria por perto. 
 
Dois dias depois, passou uma comitiva puxada por Bernardo, vaqueiro velho que também conhecia seu pai. Ele se ofereceu para ajudar com a boiada, que ia para Jataí, em Goiás. Tornou-se ajudante do Batista, pouco mais velho que ele, que trabalhava como cozinheiro. Andavam sempre na frente, preparando o rancho. Eram os primeiros a acordar e os últimos a dormir.
 
Com pouco tempo, fez-se de fato peão de boiada e tornou-se um berranteiro de toque muito apreciado. Foram cinco anos, indo e voltando entre o Triângulo Mineiro, Goiás e Mato Grosso. Algumas vezes, foram ao interior de São Paulo e, numa ocasião, até a região de Barreiras, na Bahia, sempre comprando e vendendo gado.
 
Passavam por Santa Luzia quando, num pequeno cabaré, Bernardo e João, filho do velho e seu melhor amigo, foram mortos numa briga. No dia seguinte, ele e Batista descobriram o paradeiro dos assassinos, filhos de um fazendeiro da região. Foi a primeira vez que matou alguém. Gostou da sensação da faca entrando na barriga do sujeito e de ver seus olhos arregalados e a cara de espanto. Ver a própria mão coberta de sangue lhe deu uma estranha sensação de poder.
 
Dormiram no mato, naquela noite. Eufóricos pela adrenalina, fizeram grandes planos e combinaram de, dali a dez anos, encontrarem-se em São José do Barreiro, naquela mesma data, na Casa das Irmãs, como se referiam ao puteiro que atendia a peãozada no início da descida da serra. Lá, ele se apaixonara perdidamente e prometera retornar para buscar a Maria Gabriela, uma morena de sorriso largo e risada espalhafatosa. 
 
Despediram-se de manhã.Tinha ouvido falar da construção de Goiânia e que as empreiteiras estavam contratando mão-de-obra. Como servente, ajudou a erguer o Palácio das Esmeraldas e a pavimentar a Avenida Goiás, a Araguaia e a Tocantins.
 
Certa noite, no alojamento, Alípio, um baiano, comentou sobre os garimpos na região de Poxoréu, no Mato Grosso, e leu para ele a carta de um primo, que contava a história de um amigo que enriquecera em poucos dias nas lavras.
 
De carona em carona, chegaram à cidade de Goiás, que acharam triste e vazia até para os padrões daquele sertão que conheciam bem.
 
Passaram por Baliza. Já sem dinheiro e com fome, ofereceram-se para o trabalho em uma das balsas de garimpo que ainda resistiam à decadência do lugar. Alípio logo pegou o jeito com o pesado escafandro e passou a mergulhar. Era o homem de confiança dele, vigiando a bomba e a mangueira de ar para que o baiano trabalhasse nas locas do rio, com a mangueira, a vários metros de profundidade, sugando o cascalho.
 
Já era fim do dia e o sol batia atravessado sobre a esteira onde era despejada a mistura mineral enviada pelo esforço do Alípio no fundo do Araguaia. Foram duas pedras grandes que caíram quase juntas e explodiram brilhantes sob os raios do poente. 
 
Sergipe, o velho dono da balsa, pescava distraído, bêbado de cachaça, e ria, exibindo a boca desdentada para a Celina, dona do pequeno cabaré rio acima e amasiada do garimpeiro.
 
Ele não teve dúvida. Agarrou o punhado de areia com as duas pedras no meio e enfiou tudo no bolso. 
 
Três dias depois, Alípio e ele roubaram uma canoa e sumiram rio abaixo. Gastaram tudo o que conseguiram pelos diamantes na Barra, com roupas novas, cachaça e a mulherada. Alertado por um comerciante, o delegado desconfiou, descobriu a origem do dinheiro e os prendeu ainda bêbados saindo do bar com o sol nascendo. 
 
Apanharam tanto que ele ficou cego de um olho atingido por um dos cassetetes dos guardas. Jogados na cela imunda, onde não havia nem privada, um corte na perna do Alípio começou a ficar feio, inchado e cheio de pus. Veio a febre e, quando ele gritou pedindo ajuda para o amigo, apanhou ainda mais. Alípio morreu dois dias depois e, só com o cadáver já fedendo, foi que o retiraram de lá.
 
Apareceu então um tenente do Exército, e os dez ou quinze presos da delegacia foram retirados das celas e levados para o pátio. Entregaram-lhes barras de sabão e mandaram que tomassem banho. Cada um ganhou uma calça, uma camisa e um par de botinas. O tenente ordenou que o acompanhassem. 
 
Em frente a uma casa ampla, no centro da cidade, havia grande movimentação. Caminhões chegavam e saiam, descarregavam equipamentos, caixas, tonéis. Dois homens terminavam de fixar uma placa na fachada da casa que um dos outros prisioneiros leu para ele: Fundação Brasil Central.
 
Três homens estavam no centro da movimentação. Um deles, que se identificou como Leonardo, veio até os presos e ordenou que ajudassem a carregar um caminhão com ferramentas e caixas armazenadas nos fundos da casa.
 
Partiram no outro dia cedo. Entendeu, aos poucos, que se embrenhariam nas matas do Mato Grosso, rumo ao norte, para fazer contato com índios e conquistar o Brasil. 
 
Tinha pavor de índio. Ainda pequeno, na fazenda, haviam sido cercados por um grupo de uns dez homens nus que atiraram flechas contra a casa, mataram duas vacas que estavam no curral, e só foram embora sob as balas do fuzil Mauser de seu pai.
 
Para sua surpresa, algumas semanas depois, perceberam os primeiros sinais de índios. Orlando e Cláudio, os chefes da expedição, começaram a colocar presentes em varais para agradá-los - espelhos, facões, roupas, panelas.
 
Não concordou com aquilo. Não ficaria ali para ser morto por flecha. Falou com o Evilásio e o Manoel. Roubaram uma manta de carne e um saco de feijão e, no meio da noite, pegaram a trilha de volta. Dois dias depois, quando paravam para dormir à beira de um pequeno riacho, o pescoço do Evilásio foi varado por uma flecha. Ele fugiu. Olhando para trás, ainda conseguiu ver quando a borduna do índio imenso, todo pintado de vermelho, fez a cabeça do Manoel explodir em sangue antes que caísse de cara no chão.
 
Correu a noite toda sem direção. Só parou quando deu de cara com um rio largo, que não parecia suficiente para dar conta de sua sede. Ali, dormiu e foi despertado por dois pescadores em uma canoa que o levaram para a fazenda onde trabalhavam.
 
Custódio, o fazendeiro, recebera uma gleba do governo. Como também odiava os índios, comoveu-se com a história que ouviu e lhe deu trabalho. 
 
Ficou por quatro anos na Fazenda Buritizal. Desmatavam, formavam pastos. Por mais de uma vez, junto com os jagunços contratados por Custódio, fez incursões para se livrarem de índios que ocupavam áreas próximas de que o fazendeiro queria se apossar. Chegavam no meio da noite, abriam fogo, incendiavam as casas, matavam o que viam pela frente: homens, mulheres, crianças.
 
Na fazenda, conheceu Tânia, 17 anos, filha de Honestino, um paraense agregado que morava em um dos retiros mais distantes. Casaram-se e vieram dois meninos em sequência. O pequeno mal começava a caminhar, quando flagrou a esposa com o próprio pai. 
 
Matou os dois, pegou os meninos e saiu sem rumo. O menor morreu dois meses depois. Dormiram na rua em uma currutela por onde passavam. Sem abrigo, a chuva os surpreendeu e o menino contraiu uma pneumonia. Enterrou-o com a ajuda do maior na beira da estrada. Fizeram uma cruz com dois galhos e rezaram o Pai Nosso e a Ave Maria.
 
Lembrou-se de conhecidos em Jataí. Lá, deixou o maior com dona Augusta, kardecista caridosa que já tinha dez crianças adotadas, além dos próprios filhos. Foi embora sem se despedir do menino.
 
Na parada do ônibus, viu o anúncio da construtora contratando funcionários para a obra da Hidrelétrica de Paulo Afonso, na Bahia. Procurou o escritório do gato que arregimentava a mão-de-obra. 
 
Viajou uma semana na traseira de um caminhão. A visão do Rio São Francisco encheu seus olhos. A água imensa corria verde e cristalina entre as paredes de pedra. Soube que, não muito distante dali, morrera, anos antes, Lampião. Viu na praça a foto com as cabeças dos cangaceiros expostas na cidade de Piranhas, rio abaixo.
 
Trabalhava de sol a sol. Não havia folga. O salário prometido não aparecia. Precisava comprar o que comia no armazém da própria firma, onde ia se endividando. O alojamento ficava em um lugar distante e tinham apenas esteiras de palha para dormir. Não havia banheiro. Lavavam-se no riacho próximo.
 
Era uma quarta-feira como tantas outras. Enquanto comia um resto de farinha com rapadura, tirou do bolso a velha foto, de onde o pai, a mãe e ele mesmo, aos sete anos, o olhavam. Subiu na carroceria do caminhão com o sol ainda raiando. Foi deixado na turma que terminava de concretar a parte mais alta da barragem. O São Francisco corria pequeno dezenas de metros abaixo.
 
Quando o caminhão carregado de blocos de pedra basculou a traseira, não deu tempo de se afastar. Só viu os matacões rolando em sua direção. Tropeçou e caiu para trás já no vazio. Lembrou-se da mãe. Na queda, recordou-se que, naquela quarta, faziam dez anos que se despedira de Batista em Jataí. Era o dia combinado para se encontrarem em São José do Barreiro.
 
Foi enterrado na vala comum do cemitério da cidade.

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