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Pedro Novaes
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Diretor de Cinema e Cientista Ambiental. Sócio da Sertão Filmes. Doutorando em Ciências Ambientais pela UFG. / pedro@sertaofilmes.com

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Sombras na manhã de domingo

| 02.04.24 - 08:22 Sombras na manhã de domingo Tanque na Esplanada dos Ministérios em 1964 (Fonte: Arquivo Público do Distrito Federal)Escrevo este artigo no domingo, 31 de março de 2024. Há exatos 60 anos, punham-se em marcha as tropas dos generais Olympio Mourão e Amaury Kruel para cercar o Rio de Janeiro e depor o presidente João Goulart.
 
Lula determinou que não acontecessem atos, de nenhum tipo, para lembrar o golpe de 1964. Não quer se indispor com as Forças Armadas que vivem momento de intensos conflitos internos e externos expostos pelas investigações da malfadada tentativa de golpe incitada por Bolsonaro no 8 de janeiro de 2023.
 
É um erro, apontam os mais sensatos, como o jornalista Pedro Dória e o cientista político Celso Rocha de Barros, para ficar apenas em dois exemplos. O 8 de janeiro foi somente mais uma das tentativas - algumas bem sucedidas, outras não - na tradição antidemocrática e golpista de nossas Forças Armadas.
 
Indivíduos e instituições são, em larga medida, fruto de seus tempos. Se, durante duas décadas, após a redemocratização, os militares pareceram convertidos às regras da república, as convulsões por que o país e o mundo passaram nos últimos anos, deram novamente asas àquilo que parece ser sua natureza mais profunda.
 
A despeito da fraqueza de Lula, em quem votamos sobretudo pelo horror à ameaça autoritária, a oportunidade ainda está colocada para promover uma mudança de curso nas Forças Armadas. Espera-se que a condenação de alguns cinco estrelas, figuras deploráveis como Braga Netto, Augusto Heleno e o Almirante Garnier, além do próprio Jair - esse, mero capitão, expulso das fileiras -, tracem uma linha clara para a ação dos militares que servirá de guia para as próximas décadas.
 
Isso posto, e reiterando o dito sobre o quanto somos frutos do tempo e dos acasos da história, é gozado pensar que, não fosse por essa tradição golpista de nossas Forças Armadas e pela Ditadura de 64, de várias maneiras, eu não existiria.
 
Tampouco existiria se, contra todas as probabilidades, não tivesse um bisavô com nome de marechal - Napoleão - que, no sertão recôndito de Goiás, acreditava ser importante alfabetizar seus filhos, inclusive as mulheres. Foi o que tornou Maria, minha avó materna, uma leitora voraz e acabou por convertê-la ao comunismo em plena zona rural de Jataí da primeira metade do século 20.
 
Vem 1964 e Otaídes, um de meus tios, então com apenas 17 anos, mirando o exemplo da mãe, mas em absoluta e gratuita ingenuidade, decide pichar o muro da paróquia da cidade com os dizeres: "Abaixo a Igreja! Viva Fidel!".
 
Foi preso. Viúva responsável por cinco filhos, em desespero, sem conseguir localizá-lo e temendo o pior, minha avó descobre que fora transferido para Goiânia. Com a ajuda de um amigo médico, obteve um falso atestado de distúrbios psiquiátricos para ele e conseguiu que fosse transferido para o Hospital Adauto Botelho, célebre hospício público, onde a emenda saiu, de certa forma, pior que o soneto.
 
Se seu medo era que o filho fosse torturado e morto, no hospital, submeteram-no a sucessivas sessões de eletroterapia convulsiva, as conhecidas sessões de eletrochoque, que antigamente eram feitas de maneira brutal e com duvidosos resultados. No caso do meu tio, é bem provável que o tenham deixado com sequelas pelo resto da vida, incluindo o alcoolismo.
 
Mesmo depois de conseguir retirá-lo do hospital psiquiátrico, nada indicava que minha avó, meu tio e os outros quatro irmãos estariam seguros em Jataí, uma cidade pequena e conservadora. Virgínia, minha mãe, então com 15 anos, foi despachada sozinha, primeiro para Uberlândia e, em seguida, para o Rio de Janeiro, com a missão de conseguir trabalho e montar uma casa para receber o restante da família.
 
Enquanto isso, em São Paulo, Washington, meu pai, depois de passar pelas redações de vários jornais, tinha grande dificuldade para conseguir trabalho. Apesar de ser de esquerda, não era comunista, nem tinha militância partidária. Desconfiavam dele tanto os militares, quanto a oposição que se entrincheirava na maioria das redações. Com um aceno de emprego, fez as malas e se mudou para o Rio de Janeiro com a primeira mulher e o então único filho, Marcelo, meu irmão mais velho.
 
Alguns anos depois, conheceria minha mãe na redação de um jornal - ela diagramadora, ele editor -, e bem, cá estou, nascido em 1974, período mais brutal da Ditadura, então comandada pelo infame Emílio Garrastazu Médici - época em que meus pais viram vários amigos e conhecidos desaparecerem para sempre.
 
Não seriam esses, entretanto, os últimos empurrões da Ditadura em meu destino.
 
Era 1981 e o céu clareara desde 1979, com a aprovação da Lei da Anistia. Ainda morando no Rio, passávamos férias em Alto Araguaia, no Mato Grosso, onde então morava tia Ozáguia, irmã mais velha da minha mãe.
 
Certa manhã, meu pai, consumidor voraz de notícias, passara na banca e comprara um exemplar do Diário da Manhã, jornal de Goiânia, capitaneado pelo saudoso Batista Custódio, figura que, por sua história singular, ainda merece maior reconhecimento no panteão do jornalismo brasileiro.
 
No expediente do jornal, meu pai identificou o nome do jornalista Marco Antônio Tavares Coelho, de quem fora amigo e que supunha morto após seu desaparecimento durante os anos de chumbo da Ditadura.
 
Coelho foi um membro histórico do Partidão, o Partido Comunista Brasileiro. Já havia sido perseguido durante a Ditadura Vargas. Era deputado federal pelo antigo estado da Guanabara em 1964 e teve seu mandato cassado com o golpe. Manteve sua militância e acabou preso em 1975. Foi brutalmente torturado nos quatro anos em que permaneceu encarcerado, o que também lhe rendeu sequelas pelo resto da vida.
 
Quando foi solto, em larga medida graças à incansável militância de sua mulher, Terezinha, mudou-se para Goiânia, possivelmente para sair do radar das forças de repressão, e foi contratado por Batista.
 
Restabelecido o contato, Coelho fez o convite para que meu pai assumisse uma coluna no Diário da Manhã. Pouco tempo depois, seduzido por suas opiniões sobre a função do jornalismo, Batista Custódio o convidou para assumir a direção do Diário da Manhã - e cá estamos nós, mais de 40 anos depois.
 
A manhã está fresca e limpa depois do temporal de ontem à tarde, evidente efeito das mudanças climáticas que levantam dúvidas sobre o futuro. Nas avenidas, praças e palácios, nenhuma palavra sobre os horrores da Ditadura Militar Brasileira ou sobre a falsa narrativa de seus supostos legados positivos. Na sala de casa, Fernanda, minha filha, entusiasmada, abre seu ovo de Páscoa sob a luz preguiçosa do domingo. Plena, em seus sete anos, ainda não compreende, felizmente, as sombras que se adensam. É por ela que precisamos lembrar.

Comentários

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  • 02.04.2024 15:35 ROBNEY BRUNO DE ALMEIDA

    Que belo texto, Pedro. Sua escrita melhora cada vez mais.

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Diretor de Cinema e Cientista Ambiental. Sócio da Sertão Filmes. Doutorando em Ciências Ambientais pela UFG. / pedro@sertaofilmes.com

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