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Pedro Novaes
Pedro Novaes

Diretor de Cinema e Cientista Ambiental. Sócio da Sertão Filmes. Doutorando em Ciências Ambientais pela UFG. / pedro@sertaofilmes.com

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Nem o VAR salva

| 21.10.25 - 07:49 Nem o VAR salva (Foto: TV Globo/Reprodução)
 
Ontem, compreendi que estamos realmente perdidos. Já não há mais salvação para nada — nem para a democracia, nem para o futebol.
 
Flamengo e Palmeiras fizeram um ótimo jogo no Maracanã — uma espécie de final antecipada do Brasileirão. Os dois times com os melhores elencos, mais dinheiro e mais títulos dos últimos anos brigam, ponto a ponto, pela liderança do campeonato. Foi disputado, mas, ao final, o Flamengo venceu por 3 a 2. Vão-se dez anos sem que o Palmeiras ganhe no Rio de Janeiro.
 
Eu tomava então, feliz da vida com a vitória do Mengão, minha última cerveja do domingo, trocando mensagens bem-humoradas com os flamenguistas de sempre, quando algo inesperado surgiu no WhatsApp: uma mensagem de um amigo palmeirense. O mesmo que, religiosamente, me manda memes e zoações todas as vezes em que o Flamengo tropeça — e que, evidentemente, some quando o Palmeiras perde. Aquilo era muito estranho. Imaginei até que pudesse ser caso de acidente ou morte — nada que tivesse a ver com o jogo recém-encerrado.
 
Mas, para minha surpresa, o assunto era sim o futebol. E o tom era sério. O amigo queria discutir supostos erros da arbitragem e registrar formalmente sua queixa sobre o resultado da partida.
 
Para quem não acompanha futebol, é preciso, antes de tudo, notar duas loucuras nessa iniciativa.
 
Primeiro, vir falar a sério, em tom de queixa, com um torcedor do time rival e vencedor sobre o resultado do jogo é algo inédito — e evidentemente demandava uma escalada da zoeira a níveis sem precedentes.
 
Mas, sobretudo, é inacreditável que isso tenha vindo justamente de um palmeirense, cujo time foi recentemente beneficiado por erros tão bizarros que levaram inclusive à suspensão do árbitro Ramon Abatti pela CBF. É um lance de puro terraplanismo futebolístico.
 
Com perdão do termo, mas é futebol: caguei na cabeça do meu amigo e entupi sua caixa de mensagens com impropérios e infâmias futebolísticas. Sugeri que peticionasse ao Alexandre de Moraes ou à Corte de Haia.
 
Mas não é isso o que importa. O desatino dele é só um sintoma de algo mais grave — um reflexo de como, em tempos de intolerância e busca por certezas absolutas, até o futebol passou a sofrer do mesmo mal que corrói nossa vida pública.
 
Assim como na política as pessoas se frustram porque a democracia não oferece respostas exatas e imediatas para problemas complexos, no futebol, o VAR parece ter trazido a promessa de uma exatidão científica e de uma justiça perfeita que simplesmente não existem. O que antes era aceito como parte do jogo — o erro humano, a dúvida, a discussão de boteco — agora se transforma em suspeita de conspiração e em paranoia institucional.
 
Está claro que os árbitros brasileiros são mal treinados e cometem erros grosseiros. Mas passamos a olhar para esses erros com uma lupa cada vez mais impiedosa desde que o VAR se tornou onipresente. Por mais que a tecnologia evolua, nunca será possível entregar a um robô a condução do jogo — nem ao VAR interferir em todos os lances. O futebol é um jogo contínuo, e a revisão constante por vídeo seria sua morte. Por isso, o VAR se limita a validar gols, pênaltis e lances de expulsão. E mesmo com imagens em altíssima resolução, sempre haverá decisões dependentes de interpretação. Sem elas, o futebol perderia boa parte de sua graça.
 
No fundo, o VAR é o sonho tecnocrático do futebol: a crença de que a máquina pode substituir o julgamento humano. Assim como na política, acreditamos que, com mais tecnologia, eliminaremos o erro, o ruído, o conflito. Mas é justamente o conflito — o debate, o lance duvidoso, o gol contestado — que faz tanto o futebol quanto a democracia valerem a pena.
 
Em resumo, no futebol, como na política, tornamo-nos menos tolerantes à incerteza e à subjetividade. Passamos a rejeitar a ideia de que há eventos que dependem do olhar humano, da interpretação e da deliberação. Esquecemos que a justiça — na vida ou na bola — é sempre humana: nasce do acordo, da conversa, da disputa; não vem de um raio divino nem de tábuas entregues no alto da montanha.
 
Assim na vida, assim na política, assim no futebol. Se, na política, as polêmicas se resolvem no parlamento e em outras arenas ruidosas de deliberação, no futebol, a ágora é o boteco — e a zoação, elemento fundamental do discurso.
 
Sossega, portanto, palmeirense — ou atura. Já basta o trabalho que dá tentar salvar a democracia.

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